Ignácio de Loyola Brandão / O Estado de S.Paulo
Equilibro-me sobre fina barra de ferro, tentando manter-me em pé. Estou
em uma situação curiosa. Não estou em lugar nenhum. Claro que é força
de expressão, caminho na latitude 0º, é o que leio na placa aos meus
pés. Se cair para a esquerda - meio da tarde, estou de costas para o sol
-, penetro no Hemisfério Norte. Se cair para a direita, toco o
Hemisfério Sul. Tênue linha divide o Brasil, a Terra. Subitamente, não
estou aqui, equilibro-me sobre os trilhos de minha infância, quando o
desafio era não cair, era manter-se de pé sobre estreita língua de aço.
Latitude 0°. Marco Zero da capital do Amapá, que indica a passagem da
linha do Equador. Nos dias do equinócio, bianual, março e setembro, o
sol atravessa um círculo em um monumento de concreto e acompanha
certeiro essa linha. Fronteira que atravessa igualmente o meio do
estádio Zerão, levando os jogadores a atuarem um tempo no Hemisfério
Sul, outro tempo no Norte. Situação insólita. Grande, diverso e curioso
este Brasil. Faltava-me apenas o Amapá para concluir um périplo (epa!)
por todos os Estados brasileiros, ao longo destes anos. Fechei o
trajeto.
Certo dia, Carla Nobre, poeta, cantadora, se perguntou: "Por que todos
têm uma feira de livros, menos o Amapá?" Foi lá e convenceu o jovem
governador Camilo Capiberibe, que concordou: "Organize, dou
sustentação". Havia no ar uma certa hesitação. Quem iria para tão longe?
Afinal, não se chega a Macapá por rodovia, não há como. É barco ou
avião, o que aumenta a excitação. Só duvidava quem não conhecia Carla e
os escritores amapaenses e brasileiros contemporâneos. Ela e um grupo de
assessore(a)s sorridentes e incansáveis buscaram parceiros e
estruturaram a primeira Flap, Feira de Livros do Amapá.
Durante cinco dias, mais de 70 escritores (três internacionais) do
Amapá e do Brasil, entre poetas, cronistas, dramaturgos, romancistas,
ensaístas, contadores de histórias, se encontraram, conversaram com o
público, foram às escolas, autografaram livros, frequentaram oficinas e
cafés literários, participaram de mesas-redondas, de rodas de conversas e
do Rufar e do Corredor literário. Houve a Tapaina das Palavras, com
encontros e autógrafos. Tapaina é palavra indígena, da tribo dos
vajãpis, e significa habitação.
Cada começo de noite, num palco ao ar livre, havia poetas e cantadores.
Qual o diferencial da Flap? Ela é aberta, tudo é gratuito, a população
participa. E como! Foi o maior ti-ti-ti. Era difícil circular pela feira
de livros, sempre congestionada. Gente curiosa, gente feliz, gente a
nos fotografar, a pedir autógrafos, a perguntar.
O governador injetou R$ 90 mil em vale-livro e o que se viu foi
estudante (e professor) por todo lado com o vale na mão, comprando,
comprando. (*) Ele e a mulher, a linda Cláudia, passaram todos os dias
pela feira, o que me pareceu inusitado; em geral, autoridades
desaparecem. Foi mais longe o casal, ofereceu na residência oficial um
jantar com pratos típicos para todos os participantes.
Leandro Leite Leocádio, poeta e um dos organizadores da Off Flip, em
Paraty, afirmou em seu blog: "A Flap nasceu grande, parece que já tem
cinco anos, tudo funcionou azeitado." Carla Nobre tem "musculatura",
mexe, remexe, leva escritor, organiza, comanda, esbraveja, sorri, vê o
que funciona e o que não, acompanhada por um fiel escudeiro, o marido
Bené, doce figura. Esta primeira Flap teve como patrona Esmeraldina dos
Santos, poeta e escritora quilombola.
Macapá é cidade quente, arborizada, cheia de praças. O orgulho do povo é
ser a única capital brasileira banhada pelo Rio Amazonas. Nem Manaus
(Rio Negro) nem Belém (Rio Pará) podem ostentar o título. De margem a
margem são 17 quilômetros, o que deixa embasbacado (epa!) um paulista
como eu. As águas são pontilhadas por ilhas. Soube que são milhares!
Imperdível - e necessário - é comer o camarão no bafo com açaí, mais
farinha d'água e farofa, nos fins de tarde, à beira-rio. E deixar espaço
para enfrentar o peixe ao molho de leite de coco, ou a maniçoba (a
feijoada deles), o pirarucu crocante, o tucunaré grelhado ao creme e
banana. Não esquecer de acrescentar pingos de tucupi com pimenta.
Falando em tucupi, aqui também se come o pato nesse molho. Há ainda o
charque, o tacacá, o tucunaré na chapa com leite de castanha, o filhote,
o tambaqui, o gurijuba, a dourada e o matrinchã. Uma semana para
experimentar todos. Caminhando pela orla, deparamos com vendedores de
roletes gelados de cana.
Cuidado com o que ouve e com o que fala. Algumas dicas são necessárias.
Se alguém disser que você é panema, saiba logo que está dizendo que
você é paradão, abestado. Praticamente o mesmo que pomba-lesa. Se
disserem fanchião, saiba que é vencedor, gabola, metido a besta. Fona
quer dizer o último, insiguerado é viciado. Istórdio é ressaca, ficar
doente. Jarana é o mão-de-vaca. Donzela é um tipo de bolacha, enquanto
"dor de viado" é uma dor na altura do umbigo, por causa ao cansaço.
Capô de fusca é mulher que tem a genitália avantajada. E quando alguém
ao seu lado comentar xilis-zire, saiba que disse: deixe eles irem. Só
tome cuidado com a pissica, ou má sorte, mau agouro, azar. E olhe meu
conselho: não saia de Macapá sem antes tomar uma boa gengibirra gelada.
Quanto mais toma, mais disposto fica.
Chamada capital do meio do mundo, Macapá tem uma estátua de São José,
padroeiro da cidade, colocada no alto da Pedra do Guindaste. Embaixo
dessa pedra mora uma cobra grande que bebe a água do rio, de modo que as
águas não sobem. Se a cobra for tirada dali, o Amazonas cresce, sobe e
inunda a cidade.
(*) Aproveito para mostrar minha indignação. Diante de gestos como
esse, de alguém que entende o papel do livro e sua importância, lembro
que na semana passada fui a Itapeva, para a Feira de Livros, organizada
com imenso sacrifício por um grupo e praticamente sem verbas. Procurada,
a secretária de Educação desdenhou oferecendo nada mais nada menos que
mil reais. Uma esmola. Depois, ela foi à abertura e falou da necessidade
de feiras e foi fotografada. Nas mãos de gente assim está a educação em
muitos lugares do Brasil.
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