domingo, 3 de abril de 2011

RESTART E A AMAZONIA

“Reiniciando a estultice...”

"Não há nada mais terrível do que uma ignorância ativa."
Goethe

Alerto aos leitores que este é um artigo eivado de paixão, portanto, falta-lhe comedimento, moderação; talvez lhe falte fundamentação argumentativa e falhe por algumas graves generalizações, especialmente quando trato de classes sociais e de gerações; mesmo assim prefiro correr o risco de me expor; prometo, assim que passar minha ira, reformatar as idéias que apresentarei aqui em um texto mais sóbrio e mais intelectual e academicamente substanciado. Adianto que sobre a idéia principal aqui defendida, já existem trabalhos científicos de fôlego, e, portanto, sóbrios e comedidos; remeto-os à Maria Célia Nunes Coelho, com seu artigo "Natureza e discurso ecoturístico na Amazônia”. Belém/PA: Revista Território, ano III, nº 5, jul/dez. 1998 e Magali Franco Bueno com sua dissertação “O imaginário brasileiro sobre a Amazônia: uma leitura por meio dos discursos dos viajantes, do Estado, dos livros didáticos de Geografia e da mídia impressa”, defendida no mestrado de Geografia da Universidade de São Paulo em 2003.

Dito isso, vamos ao destempero: salvo engano, em meados do ano passado, um articulista de um jornal de Goiás, me fez perder a paciência com uma imensidade de asneiras sobre o Amapá, semelhantes as que componentes do grupo teen “Restart” destilaram recentemente; como eram idéias absolutamente imbecis, preferi não me dar ao trabalho de construir uma defesa pública da minha terra, o “Restart”, pelo menos, tem o álibi da inocência e da ingenuidade juvenil, mas aquele rapaz era estupidez em seu estado puro.

Pois bem, sobre a recente polêmica “estartada” pela manifestação da opinião de membros do “Restart” sobre a Amazônia, poder-se-ia dizer que seria fruto da babaquice juvenil de uma geração consumista, tola, desinformada, autista e superficial, ou uma atitude típica da classe média também desinformada e egocêntrica, ou ainda resultado de um sistema educacional fraturado que ensinaria uma coisa no norte e nordeste do país, outra no sul e sudeste; na melhor das hipóteses – ressalte-se, melhor para o “Restart” – poderia ser fruto de uma legítima ignorância.

Creio que pode ser isso e muito mais. Esta geração nascida na década de 90 do século passado, não disse para que veio: na arte – quando fazem alguma coisa de minimamente aproveitável – é um remixe de sucessos artísticos das gerações que as antecederam (falo aqui de arte em todas as esferas: musical, plástica, dramática; literária nem existe). Engajamento social e político? Que fique para os “coroas”! O que importa é flanar pelos shoppings e pelo objeto material ou imaterial da moda, rapidamente consumido. Nem andam, levitam na superfície da vida: o mundo que se acabe, se vire sem eles. A classe média e a pequena burguesia de onde vieram esses meninos, desde que o mundo é mundo, tem pavor da mudança transformadora, aquietam-se ao seu mundo, pronta a aliar-se a tudo o que representar conservação, portanto, tem pavor do conhecimento que abale o estabelecido e o conforto do seu cotidiano.

Os meninos poderiam alegar ignorância legitima. Ok! Ninguém é obrigado a conhecer tudo. Poxa! Mas pelo menos o que está adiante do nosso focinho há de se ter, no mínimo, uma vaga idéia; e eu tenho a leve impressão, que a Amazônia está diante do focinho desses meninos.

A consciência da ignorância é uma oportunidade de uma humilde altivez, humilde porque reconhece nossas limitações e altivez porque a partir dessa consciência podemos partir para aventura do conhecimento e para o engrandecimento próprio e dos que nos cercam. O velho Sócrates dizia que sábio é aquele que conhece os limites da própria ignorância, e nada mais trágico que uma ignorância arrogante, nada mais terrível que uma ignorância ativa. Por mais banal e risível que possa parecer esse desconhecimento, não acho a menor graça na gafe e no mico que os meninos do “Restart” passaram. Benjamim Franklin, para destacar a tragédia de sujeitos desse tipo, dizia que “quase todos os tolos julgam ser apenas ignorantes”.

Sabemos das deficiências do nosso sistema educacional, mas o que é interessante neste caso é o seguinte: estimule os alunos do ultimo ano do ensino médio, em qualquer capital do norte ou do nordeste brasileiro, a descreverem o ambiente natural e social do Rio de Janeiro ou de São Paulo e aposto que a maioria não discreparia tanto das realidades dessas capitais; façamos o mesmo procedimento no Rio e São Paulo e veremos o quanto desinformada é a juventude dessas cidades sobre a realidade da Amazônia brasileira.

Quando dizia acima, que este caso, era resultado de muito mais que a superficialidade de uma geração, que a pusilanimidade de uma classe social, que uma deficiência de um sistema educacional ou a postura de um indivíduo diante do conhecimento, era porque tenho a convicção que ele é fruto de uma mentalidade sub-colonialista; pior, provinciana, dominante nas sociedades do sul e sudeste brasileiro. Os meninos do “Restart” não estão sós: a idéia de que na Amazônia tem apenas mato, é uma idéia disseminada no meio acadêmico, na mídia e no senso comum do sudeste e sul brasileiro, principalmente no Rio e em São Paulo.

Neste sentido, o Amapá, em particular, e a Amazônia, de um modo geral, quando abordados pelo establishment cultural e midiático do sul/sudeste o são quase sempre em termos naturalistas ou edênicos: sua imensidão geográfica, sua riqueza biológica, suas jazidas minerais descomunais, sua preservação ambiental, sua ausência de gente, enfim, os amazônidas não são tratados como sujeitos, mas como meros objetos integrantes da paisagem exuberante, etnocentricamente focados no espaço regional e cultural do centro-sul do país, comportam-se como Colombo – descrito por Todorov – em relação aos ameríndios: “fala dos homens que vê unicamente porque estes, afinal também fazem parte da natureza”. O caboclo ou o amazônida urbano é um componente da paisagem natural, uma espécie de bicho sofisticado.

Quando dá na veneta de um individuo ou profissional destas regiões incursionar por nossas paragens, assusta-se com a sofisticação, com a dimensão das cidades e sociedades amazônicas, expressando reações idênticas as que se vêem rotineiramente em alguns veículos da grande mídia nacional, em pérolas como essas: “Oh! Tem shopping aqui?” “Vejam só! Um supermercado, acolá!” “Opa! Uma farmácia mais ali!” “Mais vejam só: avenidas asfaltadas!” e assim por diante. Para o bem e para o mal, temos vida urbana e sociedades complexas relativamente semelhantes às do sul e sudeste do país.

Poderia arrolar aqui uma série de outros exemplos dessa mentalidade, não digo nem colonialista, mas provinciana mesmo: novelas, matérias jornalísticas, trabalhos acadêmicos, trabalhos literários, discursos políticos, enfim, exemplos que nós da Amazônia, do mais humilde ribeirinho ao mais graduado governante, estamos cansados de ver e ouvir passivamente. Basta!!!

Dorival Santos (NeY) - Professor Assistente do Colegiado de História da Universidade Federal do Amapá, advogado e doutorando do programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.

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