Bertold Brecht
Exposto o quadro autoral e político donde fluem minhas opiniões vou ao cerne do que me propus. Por temperamento não sou dos que em relação às ações dos adversários jogam tudo no lixo. A política de segurança pública levada a cabo pelo atual governo do estado possuiu – de resto como tudo na vida – uma dimensão positiva e outra negativa.
De positivo identifico basicamente o esforço de aprimoramento técnico e de gestão integrada intra-executivo, expresso na criação da Secretaria Especial de Defesa Social, esforço este posto por terra ao superdimensionar a técnica e subdimensionar a estrutura e funcionalidade integradora. O tecnicismo revelou-se no destaque a uma formação policialesca repressiva e na criminalização da miséria onde o Grupo Tático Aéreo - GTA é sua quintessência. A insuficiente integração destaca-se porque, nem no âmbito do executivo ela demonstrou-se ousada, reduzindo-se aos órgãos afetos tecnicamente à segurança pública e desprezando os politicamente afetados pela problemática. A sociedade civil, as organizações comunitárias, o legislativo e o judiciário foram absolutamente ignorados como se o problema da segurança pública lhe fosse alienígena.
Para se ter uma idéia do tecnicismo que imperou nas duas últimas gestões da segurança pública basta verificar que apenas duas ações para além da técnica policialesca repressiva se destacam do conjunto de atividades da Secretaria Especial de Defesa Social: o Centro de Atendimento a Mulher e a Família Vítimas de Violência Doméstica (CAMUF) e o Programa de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD).
De negativo identifico que o tecnicismo e o burocratismo – que foram a marca do governo como um todo – também impregnaram a segurança pública, de sorte que, a negação da participação popular autônoma foi sua conseqüência lógica mais evidente. A criação da Coordenadoria de Segurança Comunitária que poderia indicar uma política de articulação do governo com as comunidades e a valorização do policiamento comunitário-interativo serviu apenas para o aparelhamento dos conselhos de segurança comunitária e sua desmobilização e degradação participativa, ao ponto de um dos seus principais militantes ser preso sob acusação de abuso no uso de recursos públicos.
Arremessadas as minhas pedras, passo ao meu telhado de vidro. O que fizemos quando tivemos a oportunidade de ser governo? Em 1995 quando o problema da segurança pública era patrimônio quase que exclusivo da direita e a esquerda o considerava residual em relação à pauta econômica e social; apenas os governos estaduais do Amapá e do Ceará apresentavam propostas de feições democráticas. O Ceará com seu Sistema Integrado de Defesa Social - SINDES apresentava uma proposta extremamente semelhante com a experimentada pela atual gestão da segurança pública do Amapá e já naquele momento foi criticada por nós por ser de corte tecnicista e burocratista, desconsiderando absolutamente a sociedade civil, as organizações comunitárias e as outras esferas do poder público. No Amapá propúnhamos o Sistema Único de Segurança Pública – SUSP que ampliava para a participação das organizações comunitárias, mas em se tratando de incorporar a sociedade civil e outros poderes públicos foi muito tímido, de qualquer modo a experiência amapaense se tornou referência nacional. Fomos pioneiros na criação e valorização dos conselhos comunitários, do policiamento comunitário-interativo, de ações integradas.
A proposta de organização e de política para a área de segurança pública no Amapá não foi formulada ex nihilo, fundamentava-se e articulava-se, sobretudo na produção acadêmica do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, especialmente nos trabalhos de Sérgio Adorno e Paulo César Pinheiro. Mas também nas formulações individuais de Hélio Bicudo, Luiz Eduardo Soares e Alba Zaluar entre outros. Estabelecemos uma parceria duradoura e efetiva com a Anistia Internacional, intercâmbios personalizado na figura e produção de Ricardo Balestreri, hoje Secretário Nacional de Segurança Pública. Acompanhamos e intervimos na elaboração do Plano Nacional de Segurança Pública elaborado no âmbito do Instituto Cidadania e que, até hoje, é o documento referência a orientar formulações no âmbito da segurança pública.
Defender o desempenho da nossa gestão da segurança pública demandaria um espaço que um artigo de natureza propositiva como este não comporta – aliás, neste sentido já excessivamente longo – dado a necessidade de dados a serem cuidadosamente coletados e cotejados com outras experiências. A despeito desta limitação isso não nos exime de mostrar, no mínimo, um indício da justeza e do sucesso da nossa empreitada.
Ressalto que, em se tratando de segurança, a eficácia de políticas públicas comporta um paradoxo identificado por Luiz Eduardo Soares: determinada política pode ser democrática e republicanamente virtuosa e mesmo assim ter indicadores que apontam para o agravamento de problemas identificados como prioritários; como também pode se ter uma política inadequada ao ethos democrático e republicano e, contudo ter bons resultados na solução imediata de problemas identificados como urgentes.
O exemplo que trago a baila é o de Laranjal do Jarí, em janeiro de 1995 esta cidade era uma das mais violentas do país, quiçá do mundo, em uma experiência que antecipava em mais de uma década os métodos das tão propaladas Unidades de Policia Pacificadora – UPPs do Rio de Janeiro (que aliás não vejo sob olhar benevolente) reduzimos drasticamente, em menos de um ano, todos os índices de violência e invertemos diametralmente a sensação de segurança da população de modo que, desde então, Laranjal do Jarí não voltou ao estado de anomia que vivia antes daquela intervenção integrada (Policia Civil, Policia Militar, Policia Federal e Exército).
Uma série de obstáculos políticos e culturais, tais como: inexperiência dos atores das reformas; lutas autofágicas nas agencias de segurança pública e na coalizão política; feroz resistência conservadora e reacionária em grande parte do corpo policial, do legislativo e do judiciário atravancaram o aprofundamento democrático da política de segurança pública que pretendíamos.
De todo modo, penso que se aquela experiência serviu como referência para outras unidades da federação; muito mais deve ser para um governo herdeiro daquela gestão. Entendo que aquele experimento deve ser o ponto de partida a se pensar e formular a política de segurança pública no novo governo do estado do Amapá.
Ressalvando que a garantia de eficácia de uma política de segurança pública está, necessariamente condicionada a vigência de mudanças políticas estruturais (infra-estrutura, educação, saúde, cultura e renda), surgindo daí a necessidade de ampla integração organizativa e funcional, posso indicar (com base na nossa experiência de gestão e em outras experiências em outras unidades da federação como a gestão de Luiz Eduardo Soares no Rio de Janeiro, de Cristovam Buarque em Brasília e a de Tarso Genro
Um dos eixos estratégicos é a modernização das agencias de segurança pública, muito especialmente, mas não exclusivamente, as polícias. A modernização gerencial e tecnológica é condição sine qua non para eficácia das ações em segurança pública, este eixo se expressa no estabelecimento de uma arquitetura organizacional fundada na integração de todas as esferas do poder público, da sociedade civil e organizações comunitárias; na capacitação permanente dos profissionais e atores da matriz organizacional; na constituição e manutenção de uma infra-estrutura e logística de ponta; na construção de amplos bancos de dados, instrumentos e indicadores de suporte de ação, viabilizando-se dados consistentes, diagnóstico rigorosos, planejamento sistemático e avaliação corretiva regular.
Um outro eixo estratégico é a valorização profissional e a moralização da atividade policial em particular, e de segurança pública
Por fim o terceiro ponto da tríade estratégica é a construção de uma gestão com participação social efetiva, organizações civis e comunitárias, tais como OAB, Sindicado dos Serventuários, Associações de Magistrados, de Promotores, de Defesa dos Direitos Humanos, associações de bairros, conselhos comunitários entre tantas devem ter canais de participação efetiva na formulação de políticas para o setor desde o planejamento, passando pela execução e avaliação destas.
A efetivação desses eixos estratégicos deve se pautar por cinco princípios de ação. Ressalto que na descrição destes princípios tomo ipsis litteris as idéias de Luiz Eduardo Soares elaboradas no artigo “Segurança Pública: presente e futuro” – São Paulo: Revista Estudos Avançados, 20 (56), 2006. pp. 91-106. São estes os cinco princípios de ação:
Diagnóstico local prévio
A despeito de toda informação genérica e teórica que se possa ter sobre um problema a ser equacionado, jamais devemos nos esquecer da sua concretude, ou seja, que ele se configura em contexto sócio-cultural especifico que lhe dá uma fisionomia única para além de toda elaboração teórica e informações generalizantes, este cuidado prévio de diagnosticar o local antes de efetivar a ação é fundamental para o sucesso ou o fracasso de uma ação de segurança pública.
Focalização territorial
Como decorrência lógica da diagnose prévia e da necessidade de mensuração e avaliação contínua de toda ação em segurança pública, a focalização territorial é indispensável para que a avaliação seja suficientemente qualificada, “[...] os projetos sejam desenhados com precisão, os investimentos inter e multissetoriais confluam, alcancem a sinergia necessária e se articulem com a mobilização da própria comunidade, estabelecendo parcerias e redes operacionais na base”.
Consórcio e gestão participativa
Um dos mais graves problemas de segurança pública é a dimensão tecnicista e corporativista de suas ações; neste sentido, não apenas é possível, como é imprescindível mudar a escala da intervenção que visa alterar as condições sociais geradoras da insegurança pública e por elas são realimentadas, porém o sucesso deste princípio depende da condição de que, “[...] as forças que desejam a mudança somem suas energias e seus recursos, num mutirão sem precedentes, não-voluntarista, competente, apoiado em diagnósticos e orientações técnicas apropriadas, garantindo-se ampla participação e transparência, para que se construa a indispensável confiança entre as partes envolvidas. O raciocínio nos conduz à proposta: é possível e necessário celebrar um amplo pacto, sob a forma de um consórcio entre o governo [...] e todas as entidades não-governamentais e [governamentais] dispostas a cooperar”.
Reforma da estrutura de governo: integração e autoridade política
“Nova abordagem, novas políticas de natureza inter-setorial: falta um agente público apto a implementá-las. Impõe-se, então, criar um novo sujeito da gestão pública. Um ator político dotado de autoridade e competência para integrar as várias áreas da administração. [...] A transparência, a participação popular, o diálogo intra e extra governamental, todos esses ingredientes complementam o desenho elementar do funcionamento do novo sujeito da gestão pública. Outras qualidades imprescindíveis são: agilidade, conexão com a ponta, capacidade de intervenção tópica, de planejamento, avaliação e monitoramento, acesso a dados quantitativos e qualitativos, sintonia com microrrealidades locais e compromisso com a gestão global do plano de governo”.
Intersetorialidade das políticas
A problemática da insegurança urbana é, “[...] necessariamente, multidimensional, a abordagem fiel a esta complexidade nos conduzirá à elaboração de políticas adequadas a esta complexidade, isto é, sensíveis à pluridimensionalidade. Em outras palavras, a complexidade do problema exigirá políticas inter-setoriais, capazes de dar conta das diversas dimensões que compõem a [insegurança pública]. Políticas sintonizadas com a multidimensionalidade dos fenômenos são políticas multissetoriais ou inter-setoriais”.
Enfim estas são algumas idéias iniciais que torno públicas com a pretensão de contribuir para a discussão e formulação da política de segurança do novo governo do estado do Amapá. Que impacto terão? Sinceramente não sei. Vem-me a mente neste instante o exemplo de vida de Hannah Arendt: quando todo mundo ainda perplexo se perguntava como o nazismo e o holocausto foram possíveis? Como milhares, milhões de pessoas comuns e psicologicamente sadias puderam não ver e até mesmo serem cúmplices daquele horror? Hannah Arendt observando o julgamento de um homem comum (Eichmann) envolvido na organização e execução do Holocausto descobriu a base em que aquela tragédia inominável foi possível: o isolamento dos indivíduos, o esgarçamento brutal do afeto, a burocratização da vida, a supressão do espaço público havia permitido a banalização do mal; pois bem, brandindo o encontro fraterno de diferentes pessoas; a emergência e o domínio do afeto como modo de conviver; a politização da vida; a valorização do espaço público como o lugar onde as idéias possam fluir sem medo, espero colocar meu grão de areia na banalização do bem. Seguindo o ensinamento de Brecht: em vez de sermos apenas bons, esforcemo-nos para criar um estado de coisas que torne possível a bondade; em vez de sermos apenas livres, esforcemo-nos para criar um estado de coisas que liberte a todos!
Não temer o mal. Ousar o bem. Não temer o erro. Ousar mudar mundo, pois a este que vejo de banalização da violência, da intolerância e da miséria eu não me conformo. Encerro esta disposição de idéias para agir, com o brado de Walter Benjamin: que as coisas continuem como antes, eis a catástrofe!
Dorival da Costa dos Santos (Nei)
Professor da UNIFAP, Advogado, Doutorando em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense.
E-MAIL: nei.ap@bol.com.br
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