Por Breno Altman no blog http://operamundi.uol.com.br/brenoaltman/
Chamam atenção, na velha mídia, os ataques cerrados e as críticas
virulentas contra as últimas deliberações da direção do Partido dos
Trabalhadores, em reunião de sua Comissão Executiva Nacional, realizada no dia
3 de novembro.
Quais
as razões, afinal, para o documento aprovado pelo comando petista ter alcançado
esta repercussão e provocado repulsa em determinados setores?
O primeiro motivo parece saltar aos olhos.
Há quinze dias a imprensa tradicional, a oposição de direita, as
frações mais conservadoras da base governista e os áulicos do mercado só fazem
chantagear a presidente reeleita. Exercem pressão para que o programa derrotado
seja assumido pelo Planalto, como pré-condição para a pacificação política e
econômica do país.
O PT rechaçou, com firmeza, a hipótese de capitulação
condicional embutida nesta chantagem. Pode ou não ser acompanhado pela chefe de
Estado, mas propôs abertura de um novo ciclo de mudanças, além de escalada
contra fortificações do bloco político e de classes derrotado em outubro.
Mas a reação iracunda não se explica apenas porque os petistas
se recusam a recuar diante de quem foi batido pela soberania das urnas.
Muito do nervosismo contra o texto vem de um trecho fundamental:
“é urgente construir hegemonia na sociedade, promover reformas estruturais, com
destaque para a reforma política e a democratização da mídia.”
Apesar dos cuidados para não ferir suscetibilidades internas,
desponta como evidente uma certa autocrítica.
A continuidade do processo inaugurado em 2003 passou a depender,
na nova abordagem, da refundação de instituições do Estado e da informação que
bloqueiam o aprofundamento e a aceleração das demais reformas. Esse não era um
ponto de vista prevalecente nas hostes petistas durante o período anterior.
O furor do conservadorismo contra o conceito de hegemonia,
rotulando-o de “autoritário”, por sua vez, mal disfarça determinação em
proteger a própria hegemonia oligárquico-burguesa através de entulhos herdados
da ditadura militar, tais como o sistema político controlado pelo poder
econômico e o monopólio dos meios de comunicação.
Os propósitos reformadores da resolução petista tampouco esgotam
as explicações para o desconforto da direita. A irritação também se manifesta
quanto ao caminho que o partido de Lula estaria decidido a trilhar para
defender as mudanças.
“As eleições de 2014 reafirmaram a validade de uma ideia que vem
desde os anos 1980: para transformar o Brasil, é preciso combinar ação
institucional, mobilização social e revolução cultural”, ressalta o texto.
E diz mais: “será necessário, em conjunto com partidos de
esquerda, desencadear um amplo processo de mobilização e organização dos
milhões de brasileiros e brasileiras que saíram às ruas para apoiar Dilma
Rousseff, mas também para defender nossos direitos humanos, nossos direitos à
democracia, ao bem-estar social, ao desenvolvimento, à soberania nacional.”
Trata-se de notável guinada em relação aos últimos anos, quando
a governabilidade esteve pensada quase exclusivamente em termos institucionais
e dependente de acordos parlamentares cujo preço inevitável era o rebaixamento
programático, quando não a conspurcação da imagem petista.
A própria política de alianças, na referida resolução, recebe
nova embocadura.
Sem desconsiderar a necessidade de impedir, dentro do Congresso,
a formação de uma maioria de centro-direita que paralise o governo, o PT decide
“compor uma ampla frente onde movimentos sociais, partidos e setores de
partidos, intelectuais, juventudes, sindicalistas possam debater e articular
ações comuns, seja em defesa da democracia, seja em defesa de reformas
democrático-populares”.
No centro da plataforma que poderia constituir esta “ampla
frente” está a defesa de plebiscito para convocação de Constituinte exclusiva
sobre o sistema político.
Outros itens de relevo, anunciados pelo partido, seriam a adoção
de lei para democratização da mídia, a retomada do decreto de participação
social, o fim do fator previdenciário, a redução da jornada de trabalho para 40
horas semanais, as reformas agrária e urbana, a desmilitarização das polícias
militares, mais investimentos em serviços públicos e revisão da Lei de Anistia.
Destaca-se igualmente, na deliberação petista, a seguinte
afirmação: “o partido tem que retomar sua capacidade de fazer política
cotidiana e sua independência frente ao Estado, …deve buscar participar
ativamente das decisões acerca das primeiras medidas do segundo mandato, em
particular… é preciso incidir na disputa principal em curso, as definições
sobre os rumos da política econômica.”
A reviravolta de atitude manifesta-se também neste tema. Por
vários anos, em seguida ao triunfo eleitoral de 2002, o PT aparentava ter
optado por ser prioritariamente braço parlamentar do governo. Não destacamento
de vanguarda, impulsionador de ideias e movimentos, mas repartição na
retaguarda, relativamente desprovida de autonomia e iniciativa, além de
fortemente estatizada.
Curiosamente, no seio de um governo de coalizão, fruto de
cenário no qual a esquerda não tem maioria parlamentar, o principal partido
oficialista talvez fosse o único a evitar protagonismo nos embates internos e
na sociedade para estabelecer decisões governamentais.
Este conjunto de paradigmas fixado pela resolução deixa poucas
dúvidas, mesmo que não esteja dito com todas as letras, sobre o fato de o PT
estar empenhado em formidável virada na sua formulação política.
O documento da Executiva Nacional, aliás, consolida tendência
nascida na leitura das manifestações de junho do ano passado.
Retirado abruptamente de sua zona de conforto, o petismo viu-se
obrigado a reanalisar o fôlego da estratégia vigente, os impasses no programa
de reformas, a relação entre partido e governo, a combinação entre
institucionalidade e lutas sociais, a questão da participação popular e da
democratização do Estado.
Idas e vindas neste esforço de retificação puderam ser
observadas ao longo dos últimos meses, mas as condições dramáticas das últimas
eleições presidenciais provavelmente determinaram a decantação do texto
aprovado pelo estado-maior petista.
Ainda que possam ser feitas várias críticas pontuais – por
exemplo, a ausência de referências à questão ambiental -, a citada resolução
tem caráter histórico.
Claro que sua legitimidade depende de unidade, habilidade e
força para implementar os enunciados ali contidos. A presidente e o governo
podem ou não ser influenciados pelo pensamento emanado da direção petista. A
realidade pode ou não dar razão às novas ideias. Nada disso, porém, tira a
relevância do que foi decidido.
Talvez seja reconhecido, no futuro, como documento tão
importante quanto as deliberações do V Encontro Nacional, de 1987, responsáveis
pelas balizas do processo que, quinze anos depois, levaria à vitória de Lula.
A esquerda, a propósito, exibe tradição de dar nomes especiais a
textos que forjam giros fundamentais em sua política.
As recentes decisões petistas, quem sabe, um dia venham a ser
identificadas como “Resolução da Primavera”. Menos pela estação na qual foi
concebida, mais por aceitar o risco de ver cem flores desabrocharem, como diria
o revolucionário chinês Mao Tsé-Tung.
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