Em 2014, mais de 3 mil pessoas foram mortas pela polícia brasileira. A
violência policial é tão grande no Brasil que a revista Economist já
chamou o fenômeno de “serial killing”. A ONG Anistia Internacional diz que o país tem a polícia mais violenta do mundo.
Mas os policiais não são somente algozes - são também vítimas. No Brasil, um policial morre a cada 32 horas.
A
violência policial é um problema histórico que, além dos números
elevados e de casos chocantes, se consolidou como um dos maiores
impasses da democracia brasileira. Não há explicação fácil. A impunidade
dos agentes que cometeram crimes, uma sociedade que se mostra tolerante
com esse tipo de violência, até os baixos salários pagos - o piso
começa em R$ 1,3 mil - são, entre outros, elementos que compõem esse
cenário.
QUAL é o grau de letalidade da polícia brasileira
Em
agosto de 2015, 19 pessoas foram mortas em chacinas na grande São
Paulo. Policiais militares são os principais suspeitos. Em junho, um
programa de TV registrou o momento em que um policial atira em dois
suspeitos já rendidos, sob a torcida do apresentador: “atira! Atira
logo! É bandido!”.
Em setembro, um vídeo mostrou o momento em que
policiais do Rio de Janeiro colocam uma arma nas mãos de Eduardo Felipe
Santos Victor, 17 anos, já morto, adulterando a cena do crime para
tentar simular um tiroteio.
No final de novembro, também no Rio, cinco jovens foram fuzilados quando voltavam de um passeio num parque. Os policiais deram 111 tiros no carro em que estavam os rapazes.
Casos
como esses ganham a mídia, mas não representam a totalidade dos
homicídios cometidos pela polícia. Só em 2014, 3.022 pessoas foram
mortas por policiais civis e militares no Brasil, segundo o 9º Anuário de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O número é 37% maior do que no ano anterior - as PMs do Rio de Janeiro e
de São Paulo são as que têm o maior índice de letalidade e puxaram o
aumento.
Letalidade policial sobe
Somente entre 2009 e 2013, a polícia brasileira matou 11.197
pessoas. As polícias norte-americanas levaram 30 anos (entre 1983 e
2012) para matar 11.090 indivíduos, segundo o FBI. Se os números parecem
altos, eles podem ser ainda maiores: muitos Estados não contabilizam da
mesma forma os homicídios praticados por policiais dentro ou fora de
serviço.
Mas o problema da letalidade da polícia não pode ser
entendido como uma via de mão única. Os policiais brasileiros também
morrem muito. No mesmo período, entre 2009 e 2013, morreram 1.944
policiais.
Maioria dos policiais morre fora de serviço
QUEM a polícia brasileira mata
Como
nem todos os Estados divulgam completamente as estatísticas de
segurança pública, não há dados sobre o perfil das pessoas mortas em
confrontos com a polícia no país todo.
A Anistia Internacional
analisou o perfil dos homicídios decorrentes de intervenção policial no
Rio de Janeiro entre 2010 e 2013, e conclui que 99,5% das vítimas são
homens, 79,1% são negros e pardos e 75% são jovens (entre 15 e 29 anos).
Segundo pesquisa do Datafolha,
62% dos moradores das cidades nacionais com mais de 100 mil habitantes
têm medo de sofrer agressão da polícia. A maioria dos que temem a
polícia são jovens, pretos autodeclarados e moram na região Nordeste, explica a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, colunista do Nexo.
ONDE a polícia brasileira mata e morre
Rio de Janeiro, Amapá, Alagoas e São Paulo são os Estados que têm a maior letalidade da PM por número de habitantes.
Os Estados onde há maior número de policiais mortos também são os
locais em que os policiais mais matam pessoas em confronto direto
No
entanto, nem todos os Estados revelam seus números ou não os mostram na
sua totalidade. Ou seja: é possível que o número de casos seja maior do
que os registrados no mapa.
QUANDO começou a onda de letalidade
Não se sabe ao certo. Especialistas dizem que a violência sempre esteve presente na atuação das polícias.
Em
São Paulo, as epidemias de assassinato podem estar ligadas aos
esquadrões da morte, tipo de organização paramilitar que perseguia
supostos bandidos que colocavam a sociedade em perigo. “Para cada
policial morto, dez bandidos vão morrer", dizia em 1968 o investigador
policial Astorige Correia, conforme relatam reportagens no jornal "O Estado de S. Paulo".
Segundo o jornalista Bruno Paes Manso, que defendeu uma tese de doutorado
sobre o crescimento dos homicídios em São Paulo, até os anos 1960 os
assassinatos cometidos por policiais eram vistos com repulsa pela
população. A opinião pública começou a mudar após a atuação do esquadrão
da morte, que matava alegando que desta forma estava deixando a
sociedade mais segura. “A maioria da população aplaudia a ação”, diz
Manso.
Para Silvia Ramos, cientista social e pesquisadora do Cesec
(Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido
Mendes, a alta letalidade policial é tanto uma questão de resquício da
ditadura (1964-1985)quanto de negligência social. “Como quem morre pela
polícia são pessoas principalmente de camadas populares, a sociedade não
se comove”, diz.
POR QUE a polícia brasileira é tão letal
A
partir dos anos 1980, o Brasil viu os índices de criminalidade
aumentarem de maneira consistente em todo país. Para o coronel Robson
Rodrigues da Silva, mestre em Antropologia pela Universidade Federal
Fluminente, chefe do Estado-Maior Geral da Polícia do Rio de Janeiro e
ex-comandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), o aumento da
violência policial acompanhou o aumento da violência na sociedade. “Em
países com altas taxas homicidas, é plausível, factível, que a polícia
necessariamente tenha que usar a violência letal. É muito difícil ter
uma sociedade muito letal, mas uma polícia que não acompanha.”
Mas esse quadro, que atravessa décadas, também tem outras causas.
Estes são os fatores que se relacionam com a violência policial
Falta de investigação
O
relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública responsabiliza, em
parte, as instituições oficiais do Estado, como Ministério Público e os
próprios comandos das polícias, que são passivas diante dos homicídios
cometidos por policiais.
Alexandre Ciconello, assessor de Direitos
Humanos da Anistia Internacional no Brasil, concorda com a análise.
Segundo ele, as investigações do Ministério Público são muito lentas, o
que compromete os resultados. Ele cita como exemplo a situação do Rio de
Janeiro: em 2011 foram abertas 220 investigações de homicídios
decorrentes de intervenção policial. Dessas, 183 continuam em aberto.
“Isso significa que o caso provavelmente irá ficar impune.
Afinal, a cena do crime foi alterada, muitos elementos da investigação sumiram, testemunhas não são encontradas. Essa impunidade funciona como licença para matar”, diz.
Afinal, a cena do crime foi alterada, muitos elementos da investigação sumiram, testemunhas não são encontradas. Essa impunidade funciona como licença para matar”, diz.
Acadêmicos da área também defendem uma atuação
maior do Ministério Público. O sociólogo Ignácio Cano, do LAV-UERJ
(Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de
Janeiro), sugere que seja criada uma Comissão da Letalidade, dedicada
exclusivamente a investigar os homicídios causados por policiais.
Más condições de trabalho
Os
baixos salários são um problema relatado por 99% dos policiais. Os
salários variam conforme o Estado. Em São Paulo, por exemplo, um soldado
da PM recebe um salário de R$ 3.023; no Rio de Janeiro, o piso é R$
2.084. Os menores salários estão no Rio Grande do Sul - lá os PMs
começam a carreira recebendo R$ 1.375 por mês.
"Os policiais
precisam poder se dedicar só à polícia e ter um salário digno. Se você
paga melhor, você recruta melhor", diz Cano.
Estresse
Em
2013, 491 policiais foram assassinados, 369 deles fora de serviço. “A
vitimização de policiais no Brasil não tem paralelo no mundo”, diz José
Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da Polícia Militar de São
Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública. Para ele, a alta
mortalidade de policiais causa um reflexo perigoso: o medo.
“Em ambientes violentos, o policial fica mais sensível ao gatilho. O medo faz parte da rotina. E o medo é o pior conselheiro.”
José Vicente da Silva Filho
Ignácio
Cano defende que os policiais deveriam ter acompanhamento psicológico e
políticas de redução de estresse — afinal, policiais estressados tendem
a usar mais a força, e policiais submetidos a situações de confronto
têm mais estresse.
Infraestrutura e treinamento
PMs
também reclamam da falta de contingente. Em 2014 havia 425,2 mil
policiais militares no Brasil - o equivalente a um para cada 473
habitantes. No mesmo ano, também havia 117,6 mil policiais civis - um
para cada 1,7 mil habitantes.
Um número maior de policiais, no
entanto, deve vir acompanhado de treinamento adequado. A falta de
preparo é outro fator que eleva as taxas de mortes provocadas por
policiais. No Rio de Janeiro, as UPPs adicionaram 9,5 mil policiais ao
contigente do Estado. Mas 51,7% dos policiais das UPPs têm queixas
relacionadas ao treinamento e às condições de trabalho, segundo pesquisa do Cesec. Em outubro de 2015, a Polícia Militar do Rio de Janeiro anunciou que o treinamento dos policiais passará de sete para 10 meses.
A noção de guerra contra o crime
Para
a Anistia Internacional, o alto número de mortes cometidas por
policiais também é reflexo da lógica de guerra que permeia as
instituições. A organização defende que nenhuma operação que coloque
vidas, do policial ou da população, em risco deveria ser permitida.
"Faltam treinamentos para operações de risco. Há situações em que a tática policial é completamente temerária. Eles entram atirando", afirma Ciconello.
"Faltam treinamentos para operações de risco. Há situações em que a tática policial é completamente temerária. Eles entram atirando", afirma Ciconello.
Para o coronel Robson Rodrigues da Silva, a polícia foi “instrumentalizada para estar na guerra”.
Respaldo da opinião pública
A
opinião pública legitima a alta letalidade policial, alimentando o
cenário de insegurança pública. Metade da população brasileira acredita
que “bandido bom é bandido morto”, segundo pesquisa do Datafolha.
O
ex-comandante das UPPs diz que é muito difícil reverter a mentalidade
da PM porque a própria sociedade aprova o pensamento bélico. “É um
reflexo da sociedade. Estamos tentando revertar a mentalidade militar da
polícia.”
COMO o Brasil pode diminuir os índices de violência policial
A reorganização do policiamento é uma alternativa. As Unidades de
Polícia Pacificadora, criadas no Rio de Janeiro, vão nesse sentido: nos
locais onde foram instaladas, os homicídios por intervenção policial
apresentam queda de 85%, relata Ignácio Cano, que coordenou um estudo sobre o assunto.
Mas
a violência policial também acontece em locais que têm UPPs. Em 2013, o
ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu depois de ter sido
levado à base da UPP da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Em
janeiro de 2015, um menino de 11 anos foi morto em um tiroteio na
comunidade Camarista Méier. Um policial da UPP foi o autor do tiro
fatal.
Para o coronel Robson Rodrigues da Silva, as comunidades
melhoraram, mas as UPPs como ações policiais isoladas ficam
fragilizadas.“É preciso pensar em políticas maiores para que o trabalho
do policial fique menos insalubre”, diz, afirmando serem necessários
mais investimento nos policiais, investigação e combate à criminalidade
transnacional.
Propostas para redução da violência incluem a criação de 'cota de munição' e reciclagem para PMs
Para
a Anistia Internacional, armas de fogo deveriam ser usadas só em casos
extremos. E armas de alta letalidade, como fuzis, não deveriam ser
utilizadas em operações menores. As recomendações estão em um relatório com práticas bem sucedidas em diversos países.
Outra
solução é a criação de um índice para avaliar a conduta de cada
policial individualmente. A ideia do LAV-UERJ é levantar dados como o
uso de munição. O policial que ultrapassar a "cota de munição" definida
como razoável em determinado período deveria passar por um "processo de
reciclagem". Se reincidir, deveria ficar afastado das ruas por um tempo.
No
Brasil também se discute a desmilitarização das polícias. "Essa ideia
militar, de inimigo, confronto, guerra, muda a ética policial,
posicionando o agente como guerreiro. Isso acaba em morte", comenta
Ciconello. Ele acredita que o excesso de hierarquia também limita o
diálogo. O sociólogo Ignácio Cano concorda. No entanto, ele diz que a
desmilitarização não é capaz de resolver o problema todo. "Até porque,
se você for ver, as polícias civis também são muito letais".
O coronel José Vicente da Silva Filho acredita que a desmilitarização não resolveria o problema. Ele cita as polícias do Canadá, do Chile, França e Itália, que são militares e têm índices baixos de letalidade. Duas possíveis soluções, na opinião do ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, passam pelo comando das polícias e pelo Governo Federal.
A primeira é reciclar e retirar das ruas os policiais
envolvidos com mortes em confrontos. “Temos casos de policiais que têm
10, 11, mortos em confronto. Da minha experiência, mesmo na ROTA (Rondas
Ostensivas Tobias de Aguiar, modalidade de patrulhamento de choque),
não dá para matar cinco pessoas em dez anos”, diz Silva Filho. Se
houvesse alguma política do tipo, os policiais do batalhão responsável
por metralhar os cinco jovens no Rio de Janeiro provavelmente não
estariam mais na ativa. O Quartel do Irajá, responsável pela operação, é o que mais mata no Estado.
Silva
Filho também diz que o Governo Federal poderia ter uma política de
controle - restringindo o repasse de verba aos Estado que têm altos
índices de homicídios provocados por policiais. “É necessário haver um
estímulo federal para que cada Estado coloque isso como política
prioritária.”
NO MUNDO: violência policial também é tema nos EUA
Nos Estados Unidos, a violência policial - especialmente contra
negros - motivou uma série de protestos recentemente. Um dos casos mais
notáveis foi o de Ferguson, em que a polícia foi filmada matando um
adolescente, Michael Brown, que estava desarmado.
No ano passado,
242 pessoas negras foram assassinadas pela polícia americana. Lá, uma
pessoa negra corre três vezes mais risco de ser morta do que uma branca.
Este site mapeia os casos.
Levantamentos feitos no país mostram que a letalidade da polícia não
está relacionada com uma queda nos índices de criminalidade.
EM ASPAS: O que vem sendo dito sobre letalidade policial
"Os policiais também são caçados. Você acabou criando a dinâmica da vingança. Quem mata e quem morre primeiro. O Estado tem que ser mais eficiente em interromper essa guerra".
"As instituições policiais sabem que quando a força utilizada pelos seus agentes é superior àquela considerada necessária para conter a desordem ou o crime, a autoridade policial tende a ser enfraquecida. O uso desnecessário da força pode até ser percebido como um símbolo de poder, mas pode ser igualmente interpretado como um sintoma da ausência de autoridade."
"A morte não pode ser vista como uma coisa natural no nosso serviço. O resultado morte sempre será negativo. Por mais bandido que o bandido seja, por mais perigoso que ele seja. Não que ela não vá ocorrer, porque se um bandido reagir armado, o policial vai reagir armado para acabar com a ação dele. Eu não vou querer que o policial seja submetido a uma saraivada de tiros para pegar o ladrão vivo. Ele vai ter de se defender."
"Vejo uma espiral de violência das forças policiais. O ano passado foi de extrema violência e, por fatores da esfera política, a tendência é que a violência até aumente. O ano será difícil, alguns setores apresentam radicalismos e, com mais manifestações, a violência da polícia vai subir. Não há resposta dos governantes, com uma política de segurança que fracassa há 40, 50 anos."
"A formação dos nossos policiais é muito rigorosa. Há cursos voltados à questão de direitos humanos, respeito às pessoas. A polícia de São Paulo é extremamente preparada. Ela faz cumprir a lei, mas com respeito às pessoas."
"Enquanto mortes pelas mãos de policiais geraram protestos calorosos ao redor dos Estados Unidos, incendiando cidades como Baltimore e Ferguson, no Brasil elas geralmente são aceitas com horror, como parte permanente do policiamento em um país cansado de crimes violentos."
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