quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Pesquisa mostra o Amapá entre os estados onde a PM mais mata e morre

Em 2014, mais de 3 mil pessoas foram mortas pela polícia brasileira. A violência policial é tão grande no Brasil que a revista Economist já chamou o fenômeno de “serial killing”. A ONG Anistia Internacional diz que o país tem a polícia mais violenta do mundo.
Mas os policiais não são somente algozes - são também vítimas. No Brasil, um policial morre a cada 32 horas.
A violência policial é um problema histórico que, além dos números elevados e de casos chocantes, se consolidou como um dos maiores impasses da democracia brasileira. Não há explicação fácil. A impunidade dos agentes que cometeram crimes, uma sociedade que se mostra tolerante com esse tipo de violência, até os baixos salários pagos - o piso começa em R$ 1,3 mil -  são, entre outros, elementos que compõem esse cenário.

QUAL é o grau de letalidade da polícia brasileira

Em agosto de 2015, 19 pessoas foram mortas em chacinas na grande São Paulo. Policiais militares são os principais suspeitos. Em junho, um programa de TV registrou o momento em que um policial atira em dois suspeitos já rendidos, sob a torcida do apresentador: “atira! Atira logo! É bandido!”.
Em setembro, um vídeo mostrou o momento em que policiais do Rio de Janeiro colocam uma arma nas mãos de Eduardo Felipe Santos Victor, 17 anos, já morto, adulterando a cena do crime para tentar simular um tiroteio.
No final de novembro, também no Rio, cinco jovens foram fuzilados quando voltavam de um passeio num parque. Os policiais deram 111 tiros no carro em que estavam os rapazes.
Casos como esses ganham a mídia, mas não representam a totalidade dos homicídios cometidos pela polícia. Só em 2014, 3.022 pessoas foram mortas por policiais civis e militares no Brasil, segundo o 9º Anuário de Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. O número é 37% maior do que no ano anterior - as PMs do Rio de Janeiro e de São Paulo são as que têm o maior índice de letalidade e puxaram o aumento.

Letalidade policial sobe

 
Somente entre 2009 e 2013, a polícia brasileira matou 11.197 pessoas. As polícias norte-americanas levaram 30 anos (entre 1983 e 2012) para matar 11.090 indivíduos, segundo o FBI. Se os números parecem altos, eles podem ser ainda maiores: muitos Estados não contabilizam da mesma forma os homicídios praticados por policiais dentro ou fora de serviço.
Mas o problema da letalidade da polícia não pode ser entendido como uma via de mão única. Os policiais brasileiros também morrem muito. No mesmo período, entre 2009 e 2013, morreram 1.944 policiais.

Maioria dos policiais morre fora de serviço

 

QUEM a polícia brasileira mata

Como nem todos os Estados divulgam completamente as estatísticas de segurança pública, não há dados sobre o perfil das pessoas mortas em confrontos com a polícia no país todo.
A Anistia Internacional analisou o perfil dos homicídios decorrentes de intervenção policial no Rio de Janeiro entre 2010 e 2013, e conclui que 99,5% das vítimas são homens, 79,1% são negros e pardos e 75% são jovens (entre 15 e 29 anos).
Segundo pesquisa do Datafolha, 62% dos moradores das cidades nacionais com mais de 100 mil habitantes têm medo de sofrer agressão da polícia. A maioria dos que temem a polícia são jovens, pretos autodeclarados e moram na região Nordeste, explica a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz, colunista do Nexo.

ONDE a polícia brasileira mata e morre

Rio de Janeiro, Amapá, Alagoas e São Paulo são os Estados que têm a maior letalidade da PM por número de habitantes.
Os Estados onde há maior número de policiais mortos também são os locais em que os policiais mais matam pessoas em confronto direto
No entanto, nem todos os Estados revelam seus números ou não os mostram na sua totalidade. Ou seja: é possível que o número de casos seja maior do que os registrados no mapa.

QUANDO começou a onda de letalidade

Não se sabe ao certo. Especialistas dizem que a violência sempre esteve presente na atuação das polícias.
Em São Paulo, as epidemias de assassinato podem estar ligadas aos esquadrões da morte, tipo de organização paramilitar que perseguia supostos bandidos que colocavam a sociedade em perigo. “Para cada policial morto, dez bandidos vão morrer", dizia em 1968 o investigador policial Astorige Correia, conforme relatam reportagens no jornal "O Estado de S. Paulo".
Foto: /Arquivo Estadão
Reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, em julho de 1970, detalha ação dos esquadrões da morte
 
Segundo o jornalista Bruno Paes Manso, que defendeu uma tese de doutorado sobre o crescimento dos homicídios em São Paulo, até os anos 1960 os assassinatos cometidos por policiais eram vistos com repulsa pela população. A opinião pública começou a mudar após a atuação do esquadrão da morte, que matava alegando que desta forma estava deixando a sociedade mais segura. “A maioria da população aplaudia a ação”, diz Manso.
Para Silvia Ramos, cientista social e pesquisadora do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) da Universidade Cândido Mendes, a alta letalidade policial é tanto uma questão de resquício da ditadura (1964-1985)quanto de negligência social. “Como quem morre pela polícia são pessoas principalmente de camadas populares, a sociedade não se comove”, diz.

POR QUE a polícia brasileira é tão letal

A partir dos anos 1980, o Brasil viu os índices de criminalidade aumentarem de maneira consistente em todo país. Para o coronel Robson Rodrigues da Silva, mestre em Antropologia pela Universidade Federal Fluminente, chefe do Estado-Maior Geral da Polícia do Rio de Janeiro e ex-comandante das UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora), o aumento da violência policial acompanhou o aumento da violência na sociedade. “Em países com altas taxas homicidas, é plausível, factível, que a polícia necessariamente tenha que usar a violência letal. É muito difícil ter uma sociedade muito letal, mas uma polícia que não acompanha.”
Mas esse quadro, que atravessa décadas, também tem outras causas.

Estes são os fatores que se relacionam com a violência policial

Falta de investigação
O relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública responsabiliza, em parte, as instituições oficiais do Estado, como Ministério Público e os próprios comandos das polícias, que são passivas diante dos homicídios cometidos por policiais.
Alexandre Ciconello, assessor de Direitos Humanos da Anistia Internacional no Brasil, concorda com a análise. Segundo ele, as investigações do Ministério Público são muito lentas, o que compromete os resultados. Ele cita como exemplo a situação do Rio de Janeiro: em 2011 foram abertas 220 investigações de homicídios decorrentes de intervenção policial. Dessas, 183 continuam em aberto. “Isso significa que o caso provavelmente irá ficar impune. 

Afinal, a cena do crime foi alterada, muitos elementos da investigação sumiram, testemunhas não são encontradas. Essa impunidade funciona como licença para matar”, diz.
Acadêmicos da área também defendem uma atuação maior do Ministério Público. O sociólogo Ignácio Cano, do LAV-UERJ (Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro), sugere que seja criada uma Comissão da Letalidade, dedicada exclusivamente a investigar os homicídios causados por policiais.
Más condições de trabalho
Os baixos salários são um problema relatado por 99% dos policiais. Os salários variam conforme o Estado. Em São Paulo, por exemplo, um soldado da PM recebe um salário de R$ 3.023; no Rio de Janeiro, o piso é R$ 2.084. Os menores salários estão no Rio Grande do Sul - lá os PMs começam a carreira recebendo R$ 1.375 por mês.
"Os policiais precisam poder se dedicar só à polícia e ter um salário digno. Se você paga melhor, você recruta melhor", diz Cano.
Estresse
Em 2013, 491 policiais foram assassinados, 369 deles fora de serviço. “A vitimização de policiais no Brasil não tem paralelo no mundo”, diz José Vicente da Silva Filho, coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública. Para ele, a alta mortalidade de policiais causa um reflexo perigoso: o medo.
“Em ambientes violentos, o policial fica mais sensível ao gatilho. O medo faz parte da rotina. E o medo é o pior conselheiro.”
José Vicente da Silva Filho
Coronel da reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-secretário nacional de Segurança Pública.
Ignácio Cano defende que os policiais deveriam ter acompanhamento psicológico e políticas de redução de estresse — afinal, policiais estressados tendem a usar mais a força, e policiais submetidos a situações de confronto têm mais estresse.
Infraestrutura e treinamento
PMs também reclamam da falta de contingente. Em 2014 havia 425,2 mil policiais militares no Brasil - o equivalente a um para cada 473 habitantes. No mesmo ano, também havia 117,6 mil policiais civis - um para cada 1,7 mil habitantes.
Um número maior de policiais, no entanto, deve vir acompanhado de treinamento adequado. A falta de preparo é outro fator que eleva as taxas de mortes provocadas por policiais. No Rio de Janeiro, as UPPs adicionaram 9,5 mil policiais ao contigente do Estado. Mas 51,7% dos policiais das UPPs têm queixas relacionadas ao treinamento e às condições de trabalho, segundo pesquisa do Cesec. Em outubro de 2015, a Polícia Militar do Rio de Janeiro anunciou que o treinamento dos policiais passará de sete para 10 meses.
A noção de guerra contra o crime
Para a Anistia Internacional, o alto número de mortes cometidas por policiais também é reflexo da lógica de guerra que permeia as instituições. A organização defende que nenhuma operação que coloque vidas, do policial ou da população, em risco deveria ser permitida. 

"Faltam treinamentos para operações de risco. Há situações em que a tática policial é completamente temerária. Eles entram atirando", afirma Ciconello.
Para o coronel Robson Rodrigues da Silva, a polícia foi “instrumentalizada para estar na guerra”.    
Respaldo da opinião pública
A opinião pública legitima a alta letalidade policial, alimentando o cenário de insegurança pública. Metade da população brasileira acredita que “bandido bom é bandido morto”, segundo pesquisa do Datafolha.
O ex-comandante das UPPs diz que é muito difícil reverter a mentalidade da PM porque a própria sociedade aprova o pensamento bélico. “É um reflexo da sociedade. Estamos tentando revertar a mentalidade militar da polícia.”

COMO o Brasil pode diminuir os índices de violência policial

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Policial Militar na inauguração da UPP da Rocinha, em 2012
 
A reorganização do policiamento é uma alternativa. As Unidades de Polícia Pacificadora, criadas no Rio de Janeiro, vão nesse sentido: nos locais onde foram instaladas, os homicídios por intervenção policial apresentam queda de 85%, relata Ignácio Cano, que coordenou um estudo sobre o assunto.
Mas a violência policial também acontece em locais que têm UPPs. Em 2013, o ajudante de pedreiro Amarildo de Souza desapareceu depois de ter sido levado à base da UPP da Rocinha, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Em janeiro de 2015, um menino de 11 anos foi morto em um tiroteio na comunidade Camarista Méier. Um policial da UPP foi o autor do tiro fatal.
Para o coronel Robson Rodrigues da Silva, as comunidades melhoraram, mas as UPPs como ações policiais isoladas ficam fragilizadas.“É preciso pensar em políticas maiores para que o trabalho do policial fique menos insalubre”, diz, afirmando serem necessários mais investimento nos policiais, investigação e combate à criminalidade transnacional.
Propostas para redução da violência incluem a criação de 'cota de munição' e reciclagem para PMs
Para a Anistia Internacional, armas de fogo deveriam ser usadas só em casos extremos. E armas de alta letalidade, como fuzis, não deveriam ser utilizadas em operações menores. As recomendações estão em um relatório com práticas bem sucedidas em diversos países.
Outra solução é a criação de um índice para avaliar a conduta de cada policial individualmente. A ideia do LAV-UERJ é levantar dados como o uso de munição. O policial que ultrapassar a "cota de munição" definida como razoável em determinado período deveria passar por um "processo de reciclagem". Se reincidir, deveria ficar afastado das ruas por um tempo.
No Brasil também se discute a desmilitarização das polícias. "Essa ideia militar, de inimigo, confronto, guerra, muda a ética policial, posicionando o agente como guerreiro. Isso acaba em morte", comenta Ciconello. Ele acredita que o excesso de hierarquia também limita o diálogo. O sociólogo Ignácio Cano concorda. No entanto, ele diz que a desmilitarização não é capaz de resolver o problema todo. "Até porque, se você for ver, as polícias civis também são muito letais".
Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil
Moradores protestam contra UPPs e violência policial no Rio de Janeiro

O coronel José Vicente da Silva Filho acredita que a desmilitarização não resolveria o problema. Ele cita as polícias do Canadá, do Chile, França e Itália, que são militares e têm índices baixos de letalidade. Duas possíveis soluções, na opinião do ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, passam pelo comando das polícias e pelo Governo Federal.
A primeira é reciclar e retirar das ruas os policiais envolvidos com mortes em confrontos. “Temos casos de policiais que têm 10, 11, mortos em confronto. Da minha experiência, mesmo na ROTA (Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar, modalidade de patrulhamento de choque), não dá para matar cinco pessoas em dez anos”, diz Silva Filho. Se houvesse alguma política do tipo, os policiais do batalhão responsável por metralhar os cinco jovens no Rio de Janeiro provavelmente não estariam mais na ativa. O Quartel do Irajá, responsável pela operação, é o que mais mata no Estado.
Silva Filho também diz que o Governo Federal poderia ter uma política de controle - restringindo o repasse de verba aos Estado que têm altos índices de homicídios provocados por policiais. “É necessário haver um estímulo federal para que cada Estado coloque isso como política prioritária.”

NO MUNDO: violência policial também é tema nos EUA

Foto: Light Brigading/Flickr/Creative Commons
Pôster mostra vítimas desarmadas assassinadas pela polícia americana
Pôster mostra vítimas desarmadas assassinadas pela polícia americana
 
Nos Estados Unidos, a violência policial - especialmente contra negros - motivou uma série de protestos recentemente. Um dos casos mais notáveis foi o de Ferguson, em que a polícia foi filmada matando um adolescente, Michael Brown, que estava desarmado.
No ano passado, 242 pessoas negras foram assassinadas pela polícia americana. Lá, uma pessoa negra corre três vezes mais risco de ser morta do que uma branca.
Este site mapeia os casos. Levantamentos feitos no país mostram que a letalidade da polícia não está relacionada com uma queda nos índices de criminalidade.

EM ASPAS: O que vem sendo dito sobre letalidade policial

"Os policiais também são caçados. Você acabou criando a dinâmica da vingança. Quem mata e quem morre primeiro. O Estado tem que ser mais eficiente em interromper essa guerra".
Renato Sérgio de Lima
Vice-presidente do Fórum de Segurança Pública
"As instituições policiais sabem que quando a força utilizada pelos seus agentes é superior àquela considerada necessária para conter a desordem ou o crime, a autoridade policial tende a ser enfraquecida. O uso desnecessário da força pode até ser percebido como um símbolo de poder, mas pode ser igualmente interpretado como um sintoma da ausência de autoridade."
Adriana Loche
Doutora em sociologia pela USP
"A morte não pode ser vista como uma coisa natural no nosso serviço. O resultado morte sempre será negativo. Por mais bandido que o bandido seja, por mais perigoso que ele seja. Não que ela não vá ocorrer, porque se um bandido reagir armado, o policial vai reagir armado para acabar com a ação dele. Eu não vou querer que o policial seja submetido a uma saraivada de tiros para pegar o ladrão vivo. Ele vai ter de se defender."
Alberto Malfi Sardilli
Comandante da ROTA
"Vejo uma espiral de violência das forças policiais. O ano passado foi de extrema violência e, por fatores da esfera política, a tendência é que a violência até aumente. O ano será difícil, alguns setores apresentam radicalismos e, com mais manifestações, a violência da polícia vai subir. Não há resposta dos governantes, com uma política de segurança que fracassa há 40, 50 anos."
Martim de Almeida Sampaio
Diretor da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP
"A formação dos nossos policiais é muito rigorosa. Há cursos voltados à questão de direitos humanos, respeito às pessoas. A polícia de São Paulo é extremamente preparada. Ela faz cumprir a lei, mas com respeito às pessoas."
Geraldo Alckmin
Governador de São Paulo
"Enquanto mortes pelas mãos de policiais geraram protestos calorosos ao redor dos Estados Unidos, incendiando cidades como Baltimore e Ferguson, no Brasil elas geralmente são aceitas com horror, como parte permanente do policiamento em um país cansado de crimes violentos."
Simon Romero e Taylor Barnes
Repórteres do The New York Times

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